
O ESPÍRITO CRISTÃO DA JUSTIÇA SOCIAL CONTRA A ORDEM CORPORATIVA DO FASCISMO
Vivemos tempos de muita confusão ideológica. Há quem tente reescrever a história dos movimentos sociais e populares, como o Trabalhismo, colando nela rótulos que não correspondem nem à sua origem, nem ao seu espírito.
Em meio a esse desencontro e guerra de narrativas, é fundamental voltarmos às fontes. E uma dessas fontes — talvez a mais esquecida — é de natureza espiritual: a relação profunda entre o “Trabalhismo e a Doutrina Social da Igreja”, especialmente a encíclica “Rerum Novarum”, do Papa Leão XIII.


A Doutrina Social da Igreja (DSI) é um conjunto de princípios e diretrizes que visa orientar a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) em relação às questões sociais e econômicas, buscando promover a justiça, a dignidade humana e o bem comum, oferecendo uma visão ética e moral para a organização da sociedade.
Muitos ainda associam o Trabalhismo à “Carta del Lavoro”, documento do regime fascista italiano de Benito Mussolini, de 1927, principalmente devido ao seu enfoque em um sistema corporativista, onde o Estado controla as relações entre empregados e empregadores através de corporações profissionais. Nada mais equivocado!
A “Carta do Trabalho” (italiano: “Carta del Lavoro”; publicada em 30/04/1927 na “Gazzetta Ufficiale Del Regno D'Italia”) foi o documento no qual o Partido Nacional Fascista, de Benito Mussolini, apresentou as linhas de orientação que deveriam guiar as relações de trabalho na sociedade italiana, em particular entre empregadores, trabalhadores e Estado, estabelecendo um modelo político-econômico corporativista, baseado no ideal de colaboração de classes, princípio que se opõe ao de luta de classes.[1]
A “Carta do Trabalho” de Mussolini subordina o mundo da produção (empresários e produtores) ao poder do Estado e ao crescimento da potência nacional. Não se trata de capitalismo nem de socialismo, mas de um erro particular cometido por todos os regimes de excessão, do qual o fascismo é a variante italiana.[2]
Ou seja, enquanto a “Carta do Trabalho”, fundamentada no fascismo, submetia o trabalho ao Estado autoritário, a “Rerum Novarum”, fundamentada no Evangelho, elevava o trabalhador à condição de sujeito moral e espiritual.
Neste artigo, defendemos a tese de que o verdadeiro Trabalhismo tem mais a ver com o Evangelho de Cristo do que com qualquer projeto de dominação. Convido você a refletir comigo sobre essa distinção essencial e, quem sabe, ajudar a reacender a chama ética do Trabalhismo em nossos dias.
RERUM NOVARUM: UMA CARTA PARA OS POBRES E PARA A JUSTIÇA
A Encíclica “Rerum Novarum” (em português, "Das Coisas Novas") trata sobre a condição dos operários, escrita pelo Papa Leão XIII em 15 de maio de 1891, para denunciar a miséria provocada pelo capitalismo selvagem da revolução industrial.[3]
O documento papal critica fortemente a falta de princípios éticos e valores morais na sociedade progressivamente laicizada de seu tempo, uma das grandes causas dos problemas sociais, elaborando alguns princípios que deveriam ser usados para a justiça social, econômica e industrial.
Um dos princípios elaborados pelo Papa Leão XIII foi, por exemplo, a melhor distribuição de riqueza, a intervenção do Estado na economia a favor dos mais pobres e desprotegidos e a caridade do patronato à classe operária.
A encíclica defende, ainda, que o trabalho é digno, que o trabalhador tem direito a salário justo, descanso, previdência e organização sindical. E mais: que o Estado tem obrigação moral de intervir quando o mercado viola a dignidade humana.
A “Rerum Novarum” foi uma carta aberta a todos os bispos da ICAR, sobre as condições das classes trabalhadoras, em cuja composição as ideias distributivistas do teólogo e deputado da Assembléia Nacional Alemã, Wilhelm Emmanuel von Ketteler, tiveram grande influência.[4]
Soa familiar? Esse é o DNA do Trabalhismo! A luta pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), pela educação, pelo salário mínimo, pela aposentadoria e pelos direitos sociais têm a mesma raiz ética da “Doutrina Social da Igreja”: a valorização do ser humano, acima do lucro e do poder.
A “Rerum Novarum” inspirou movimentos operários cristãos na Europa e nas Américas. No Brasil, esse espírito soprou forte em Getúlio, Brizola, Darcy e tantos outros e outras que fizeram da política um instrumento de “Justiça, Paz e Integridade da Criação de Deus”.
“CARTA DEL LAVORO”: A DISTORÇÃO AUTORITÁRIA DO TRABALHO
Já a “Carta del Lavoro”, redigida por Mussolini, foi um instrumento para controlar o mundo do trabalho sob o regime fascista. Nela, os sindicatos eram obrigatórios — mas subordinados ao Estado. Greves? Proibidas. Reivindicações autônomas? Reprimidas. O trabalhador virava peça da engrenagem, e não cidadão de direitos.
Mussolini defendia um sistema político (fascismo) cuja caracteristica era um Estado centralizado e autoritário, com profundas distorções sobre a ideia de “nacionalismo” e forte rejeição à democracia liberal. O “Duce” acreditava que a Itália precisava de um líder forte e de um Estado poderoso para restaurar a grandeza do país.
Alguns, ainda hoje, tentam colar essa lógica do fascismo italiano de Benito Mussolini ao Trabalhismo brasileiro de Getúlio Vargas, confundindo o papel do Estado como regulador da justiça social com o autoritarismo centralizado na figura de um “salvador da pátria”.
É preciso separar o joio do trigo, colocando cada coisa em seu devido lugar: O corporativismo fascista de Mussolini queria um Estado que esmagasse a liberdade do cidadão. O Trabalhismo de Vargas queria um Estado que garantisse oportunidades iguais e justiça social para todos os cidadãos e cidadãs.
O fascismo de Mussolini e o trabalhismo de Vargas, embora com influências e elementos históricos em comum, possuem diferenças significativas. O fascismo italiano, liderado por Mussolini, era um movimento político de direita radical que defendia o autoritarismo, o ultranacionalismo e a repulsa ao socialismo e ao comunismo.
O trabalhismo de Vargas, no Brasil, era um projeto político mais complexo, que, embora também autoritário (caudilhesco), apresentava elementos de nacionalismo e preocupação com a classe trabalhadora, buscando um equilíbrio entre os interesses do capital e do trabalho.
Vejamos um quadro categórico sobre as semelhanças e diferenças, necessário para a comparação entre o Trabalhismo de Vargas e o Fascismo de Mussolini:
Semelhanças
Autoritarismo: Ambos os regimes eram caracterizados pelo autoritarismo, com o controle total do Estado sobre a sociedade, a supressão da oposição e a centralização do poder.
Nacionalismo: O fascismo e o trabalhismo compartilhavam uma forte veia nacionalista, exaltando a nação e o Estado como valores superiores.
Corporativismo: Ambos os regimes adotaram a lógica corporativista, buscando a integração dos trabalhadores e empresários sob o controle estatal, com o objetivo de evitar conflitos sociais e fortalecer a unidade nacional.
Culto à personalidade: Ambos os líderes cultivavam um culto à personalidade, buscando a imagem de um líder forte e carismático que representava a nação.
Diferenças
Origem e contexto: O fascismo italiano surgiu como resposta à crise econômica e à instabilidade política do pós-guerra, enquanto o trabalhismo de Vargas era mais fruto de um processo de consolidação do nacionalismo brasileiro e de uma tentativa de modernização do país.
Radicalização: O fascismo de Mussolini era mais radical e ideologicamente mais rígido, com uma forte rejeição ao socialismo e ao comunismo, enquanto o trabalhismo de Vargas apresentava uma postura mais flexível e pragmática, buscando a colaboração com diferentes setores da sociedade.
Relação com a classe trabalhadora: O fascismo de Mussolini priorizava a ordem e a disciplina, com a supressão dos direitos dos trabalhadores, enquanto o trabalhismo de Vargas buscava a construção de um Estado de bem-estar social, com a implementação de leis trabalhistas e benefícios para a classe trabalhadora.
Relação com a Segunda Guerra Mundial: Mussolini, como líder do fascismo, foi um aliado de Hitler e um dos responsáveis pela Segunda Guerra Mundial, enquanto Getúlio Vargas, inicialmente simpatizante do “Eixo”, mais tarde mudou sua postura e apoiou os “Aliados”, buscando garantir a soberania do Brasil.
Getúlio Vargas governou o Brasil em dois períodos distintos: de 1930 a 1945, conhecido como a “Era Vargas”, e novamente de 1951 a 1954. Durante sua liderança, houve momentos em que a relação entre o governo de Vargas e as transformações mundiais, particularmente na Europa e nos Estados Unidos, foi marcada por uma complexidade de fatores, incluindo influências internas e externas, mudanças de política ao longo do tempo e a necessidade de equilibrar interesses setoriais e empresariais.
Embora Getúlio Vargas tenha adotado, inicialmente, medidas autoritárias que se assemelhavam ao fascismo em alguns aspectos, ele se afastou completamente dos regimes fascistas e nazistas europeus, com seus modelos político-econômicos, tomando decisões que o aproximaram do bloco dos “Aliados”, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial.
A história mostra que o Trabalhismo de Vargas, a seu tempo, dialogou com várias correntes políticas, superando-as: enquanto o fascismo de Mussolini matava a organização operária, o Trabalhismo de Vargas sempre buscou fortalecê-la — seja nos sindicatos, seja nas políticas públicas.
FÉ E OBRAS: UMA ALIANÇA PELA DIGNIDADE
E no meio? Onde entra a fé nessa história?
Entra na Alma Nacional!
A “Teologia da Libertação”, as “Comunidades Eclesiais de Base”, as “Pastorais Sociais”, os “mutirões” organizados por igrejas, católicas e protestantes, os centros de formação e tantas outras ações mostram que as instituições religiosas sempre foram parceiras do povo. De Dom Hélder Câmara ao Pastor Presbiteriano Jaime Wright, de lideranças católicas a evangélicos progressistas, a fé tem mobilizado gente para lutar por terra, pão, saúde, moradia e educação.
Jaime Wright, pastor presbiteriano brasileiro e militante de direitos humanos, foi um grande combatente contra a ditadura militar. Filho de missionários norte-americanos, estudou Teologia e fez pós-graduação na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (EUA), em 1950. Voltou ao Brasil e se mudou para Ponte Nova, na Bahia, para dirigir o Instituto de Educação Presbiteriano Ponte Nova. Em 1968, assumiu a direção da Missão Presbiteriana do Brasil Central, em São Paulo.[5]
Em 1975, James Wright participou do culto em memória a Vladimir Herzog, com Dom Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel. A partir de 1979, a convite de Dom Paulo, trabalhou pela causa dos direitos humanos na Arquidiocese de São Paulo, e coordenou o projeto “Brasil: Nunca Mais”, que resultou na publicação de um livro, um inventário sobre a tortura no Brasil durante os 21 anos de ditadura.
Este trabalho fez a mais ampla pesquisa realizada pela sociedade civil sobre a tortura política no país. O projeto foi uma iniciativa do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e da Arquidiocese de São Paulo, os quais trabalharam sigilosamente durante cinco anos sobre 850 mil páginas de processos do Superior Tribunal Militar.
O pastor presbiteriano James Wright trabalhou incansavelmente para a organização de um relatório, publicado como livro em 1985, que revelaram a gravidade das violações aos direitos humanos promovidas pela repressão política durante a ditadura militar, cujo êxito continua influenciando gerações, inclusive impulsionando o compromisso do Estado brasileiro com o enfrentamento à tortura.
Vários outros pastores e presbíteros protestantes brasileiros contribuíram com reflexões sobre a participação da Igreja Evangélica nas questões políticas e sociais, incluindo, Lyzâneas Maciel, Richard Shaull, Rubem Alves, Zwinglio Mota Dias, Carlos Cunha, José Bittencourt Filho, Joaquim Beato, Julio de Santana, Jaci Maraschin, Milton Schwantes, entre outros e outras.
Estes pastores e presbíteros, juntamente com membros de igrejas, professores e alunos de seminários, ajudaram a difundir o pensamento social e a conscientização política no Brasil e na América Latina, com foco na luta contra as injustiças sociais.
No Brasil de hoje, igrejas organizam cursos de qualificação profissional, acolhem pessoas em vulnerabilidade, combatem a desigualdade, denunciam injustiças e constroem pontes de solidariedade. Isso é Trabalhismo na prática!
SEM FÉ E TRABALHO NÃO HÁ TRANSFORMAÇÃO
A pergunta que fica é: o Trabalhismo de hoje compreende a força histórica das instituições religiosas na transformação social?
Não se trata de misturar púlpito de igreja com palanque político, mas de entender que a fé move corações e mentes, forma consciências e fortalece comunidades. Ignorar isso é abrir mão de um dos motores mais potentes da mobilização social.
É preciso entender que a fé é o motor essecial para mudanças positivas e significativas, tanto na vida individual quanto coletiva. A fé, nesse contexto, implica acreditar na existência de um poder superior, confiar em seus princípios e buscar viver de acordo com eles.
É hora de nos religarmos a esse fio da história que move a vida. É preciso dialogar com as igrejas militantes, com as tradições de matriz africana, com os movimentos sociais que lutam por Justiça, Paz e Integridade da Criação, entendendo que esta luta também é um ato de fé, amor e caridade.
Diante dos desafios históricos e contemporâneos impostos pela lógica excludente das ordens corporativas autoritárias, reafirmamos o espírito cristão da justiça social como farol ético e político. Este é um chamado à consciência, à solidariedade e à ação.
Convido você, leitor e companheiro de jornada, a caminhar comigo — com fé, coragem e perseverança — na construção de um Brasil e uma Bahia com mais justiça, fraternidade e igualdade. Que juntos possamos cooperar ativamente pela superação das injustiças e pelo florescimento de uma verdadeira Cultura de Paz. O tempo é agora, e o futuro será obra da nossa intencionalidade comprometida.
O Trabalhismo precisa, mais do que nunca, resgatar sua Alma Nacional. E sua Alma Nacional é feita de Palavra, de Povo, de Pão e de Fé.
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Ricardo Justo - Teólogo, Educador e Gestor
Crédito da imagem: https://www.tiberioz.com.br/o-que-e-justica-divina/
[1] Carta del lavoro - Enciclopedia - Treccani. Acesso em 23/05/2025.
[2] https://web.archive.org/web. Acesso em 23/05/2025.
[3] Rerum Novarum: sobre a condição dos operários (15 de maio de 1891) | LEÃO XIII. Acesso em 23/05/2025.
[4] Wilhelm Emmanuel von Ketteler - Oxford Reference. Acesso em 23/05/2025.
[5] Jaime Wright – Memorias da Ditadura. Acesso em 23/05/2025.
[6] BNM. Acesso em 23/05/2025.
O ESPIRÍTO CRISTÃO DA
JUSTIÇA SOCIAL
"Justiça social exige liberdade, dignidade e solidariedade."
O ESPÍRITO CRISTÃO DA JUSTIÇA SOCIAL CONTRA A ORDEM CORPORATIVA DO FASCISMO
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