
O Papel das Religiões na Construção de uma Sociedade com Justiça, Paz e Integridade da Criação.
FÉ, SUSTENTABILIDADE E PAZ
A relação entre religião e meio ambiente é histórica e profundamente significativa e enraizada na cultura humana. Muitas tradições religiosas reconhecem nos elementos naturais uma dimensão sagrada, como um cuidado da Terra e de todas as outras criaturas vivas para o Criador.
Para essas tradições religiosas, a humanidade seria responsável por cuidar da Terra como a “Nossa Casa Comum”, onde homens e mulheres são uma espécie privilegiada pela razão, e por isso teriam maiores responsabilidades em relação às demais criaturas.


Entretanto, a crise ambiental levou governos, empresas e instituições sociais, inclusive as religiões, a ficarem alertas. Em 1986, da Basílica de São Francisco de Assis, na Itália, saiu o documento “A Declaração de Assis”, assinada por representantes do Budismo, Cristianismo, Hinduísmo, Islamismo e Judaísmo.[1]
A partir dos anos de 1970, o movimento ecológico chamou a atenção do mundo para os urgentes problemas ambientais, cujo principal ponto de divergência era o de que as agências ambientais estatais teriam como foco principal o cuidado com a poluição industrial; as entidades ambientais não-governamentais, por sua vez, com a preservação de ecossistemas.
O movimento ecumênico internacional, representado especialmente pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI), foi fundamental nesse período na construção dos conceitos de sustentabilidade e de comunidades sustentáveis, no contexto das articulações da Organização das Nações Unidas (ONU) em torno da responsabilidade de governos e agentes públicos e privados pelo meio ambiente.
O encontro dos líderes dos cinco maiores sistemas de crença foi proposto pelo príncipe Philip, duque de Edimburgo, então presidente do WWF International, que nove anos depois fundaria a Aliança das Religiões e Conservação (ARC). A partir daí, a ARC reuniu, além das declarações destas cinco crenças, outras sete.[2]
Desde 2013, o trinômio riqueza, pobreza e ecologia tem guiado as reflexões do Conselho Mundial de Igrejas – CMI diante da conjuntura mundial, na busca pela justiça econômica, com a proposta de pensar uma alternativa à economia e aos impactos sociais gerados pela má distribuição de riquezas.[3]
A Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas - CMIR, em parceria com o Conselho Mundial de Igrejas - CMI e o Conselho para Missão Mundial – CMM, convidou economistas e ativistas de vários países do mundo, os quais elaboraram a “Declaração de São Paulo”, intitulada “Transformação Financeira Internacional para uma Economia da Vida”.[4]
Ecumenismo e ecologia estão relacionados na perspectiva de que o ser humano e a natureza formam uma unidade, cujo único propósito é a preservação da criação de Deus, numa nova perspectiva de relação com a natureza.
A gravidade das questões ambientais na atualidade interpela todos os povos, com suas culturas e suas crenças, para um novo estilo de vida e de relação com a natureza, comprometendo-se com o cuidado da “Nossa Casa Comum”. As igrejas e as religiões são convocadas para a realização de projetos ecológicos comuns.
Em Salvador, uma cidade de intensa diversidade religiosa e riqueza ambiental, a conexão entre espiritualidade e natureza pode ser um fator determinante para a construção de uma cidade mais sustentável e pacífica.
No entanto, essa convergência enfrenta desafios, incluindo a degradação de espaços destinados às práticas religiosas, intolerâncias religiosas e a desconsideração sobre a contribuição das várias religiões existentes no município para a formulação de políticas públicas ambientais.
RELIGIÃO E A SAGRADA NATUREZA
As religiões judaico-cristãs e de matriz africana compartilham uma visão em que a natureza é um dom divino ou uma manifestação do sagrado. No judaísmo e cristianismo, a criação divina é um bem confiado aos seres humanos para cuidado e preservação (Gn 2:15).
O Papa Francisco, em sua encíclica “Laudato Si” (Louvado Sejas), a primeira do papado de Francisco produzida integralmente por ele, é uma frase repetida três vezes ao longo de suas mais de 190 páginas: “tudo está conectado”, na defesa de que o ser humano não está dissociado da Terra ou da natureza, eles são partes de um mesmo todo. (FRANCISCO, 2015).
Nas religiões de matriz africana, os orixás estão ligados a elementos naturais: Oxum é a senhora das águas doces, Iemanjá governa os mares, Ossain está relacionado às folhas medicinais e Oxóssi é o protetor das matas. Esse entendimento reforça a responsabilidade coletiva dos praticantes dessas religiões sobre a preservação ambiental (PRANDI, 2005).
RELIGIÃO, POLÍTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS
Apesar do ditado popular que afirma que “política e religião não se discutem”, ambos os campos estão intrinsecamente ligados. A religião influencia valores e comportamentos, enquanto a política molda as estruturas sociais que afetam a prática religiosa. Quando bem gerenciada, essa conexão pode gerar políticas públicas eficazes para a sustentabilidade ambiental e a qualidade de vida urbana.
Em Salvador, a cooperação entre líderes religiosos e gestores públicos pode resultar em projetos de requalificação ambiental, como o reflorestamento de áreas degradadas, proteção de mananciais e conscientização sobre a gestão de resíduos sólidos urbanos.
Iniciativas como o Programa Nacional de Educação Ambiental e Cultura de Paz (SANTOS, 2019) mostram que a articulação entre comunidades de fé e o poder público é uma via promissora para soluções socioambientais.
INTOLERÂNCIAS RELIGIOSAS E O DESAFIO DA CULTURA DE PAZ
Um dos grandes desafios para essa colaboração é o combate à intolerância religiosa. No Brasil, tanto os terreiros de religiões de matriz africana, quanto as igrejas de matriz neopentecostais e pentecostais, são frequentemente alvos de violência e depredação, muitas vezes sob pretextos pseudo-religiosos (SILVA, 2021).
Essa hostilidade compromete não apenas a liberdade religiosa, mas também a possibilidade de um diálogo frutífero para a sustentabilidade urbana. Alternativas concretas para combater intolerâncias religiosas incluem, entre outras:
Educação inter-religiosa: Inserção de conteúdos sobre diversidade religiosa e respeito às tradições espirituais nos currículos escolares.
Políticas públicas inclusivas: Criação de espaços de diálogo entre diferentes confissões religiosas, promovendo a cooperação para a proteção ambiental.
Proteção legal: Aplicabilidade rigorosa da legislação contra crimes de intolerância religiosa.
POR UMA ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICA E INCLUSIVA
Concluindo, diante dos desafios ambientais e sociais contemporâneos, como as mudanças climáticas, que acentuam a degradação ambiental, a construção de uma “Salvador, Cidade da Cultura de Paz”, necessita de uma nova perspectiva: uma espiritualidade ecológica inclusiva.
A interseção entre Religião e Meio Ambiente, como apresentado neste artigo, pode desempenhar um papel fundamental na formulação de políticas públicas que valorizem tanto a preservação da natureza, quanto o respeito à diversidade religiosa.
Uma espiritualidade ecológica, abordagem que relaciona a fé com o meio ambiente, buscando uma reconexão entre a humanidade e a natureza, permite o desenvolvimento da noção de que a natureza não é apenas um recurso a ser explorado, mas um espaço sagrado, digno de cuidado e reverência.
Essa visão já está presente em diversas tradições religiosas no Brasil, sejam judaico-cristãs, de matriz africana ou indígenas, e deve ser fortalecida como um princípio ético coletivo. Ao propor formas de viver e interpretar o mundo e experienciar o divino, também revelam importantes aspectos históricos e socioculturais de um grupo social.
Como afirmou o Prof. Darcy Ribeiro (2002), em sua obra O Povo Brasileiro, “o Brasil, um país multicultural, foi construído a partir da contribuição de muitos povos que carregam consigo sua herança cultural, a qual se expressa a partir de diversos elementos, entre esses a religião”.
A luta contra o desmatamento, a contaminação das águas e a manipulação dos espaços urbanos não deve ser uma pauta isolada, mas sim um compromisso conjunto de todos os segmentos da sociedade, incluindo comunidades de fé.
Além disso, uma espiritualidade ecológica e inclusiva, pressupõe o respeito às diferentes expressões religiosas e culturais, combatendo a intolerância e promovendo o diálogo inter-religioso como base para uma Cultura de Paz.
O preconceito e a perseguição às tradições afro-brasileiras ou aos integrantes das denominações pentecostais e neopentecostais, por exemplo, representam não apenas um ataque à liberdade religiosa, mas também uma ameaça à diversidade cultural e ambiental, pois os praticantes dessas religiões jogam um importante papel para a preservação dos ecossistemas naturais.
Portanto, convidamos cada leitor e cada leitora a refletir sobre o papel de sua fé, crença, filosofia de vida e valores culturais na proteção do meio ambiente e da justiça social, adotando práticas sadias de respeito aos recursos naturais, culturais e sociais.
A construção de um mundo mais harmonioso depende da nossa capacidade de mudança de mentalidade sobre o valor sagrado da Terra e das diferentes formas de espiritualidade que nela coexistem. Só assim poderemos transformar Salvador em uma cidade verdadeiramente verde, plural e comprometida com o bem comum.
Ricardo Justo - Teólogo e Ambientalista
[1] A fraternidade entre as religiões, a grande herança de Assis 1986 - Vatican News. Acesso em 26/03/2025.
[2] Alliance of Religions and Conservation. Acesso em 26/03/2025.
[3] Economia da Vida: a proposta do Conselho Mundial de Igrejas. Entrevista especial com Marcelo Schneider - Instituto Humanitas Unisinos. Acesso em 26/03/2025.
[4] Delegação ecumênica reúne-se com representantes bolivianos para analisar a economia global - Instituto Humanitas Unisinos. Acesso em 26/03/2025.
FÉ, SUSTENTABILIDADE
E PAZ
O Papel das Religiões na Construção de uma Sociedade com Justiça, Paz e Integridade da Criação.
REFERÊNCIAS
CASALDÁLIGA, P., VIGIL, José M. Espiritualidade da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1996.
CHARDIN, Teilhard de. Mundo, homem e Deus. São Paulo: Cultrix, 1980.
CONIC, Casa Comum: nossa responsabilidade. Texto Base CFE 2016. Brasília: CONIC, Edições CNBB, 2016.
FRANCISCO. Encíclica Laudato Si´- Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006.
MAÇANEIRO, Marcial. Religiões e ecologia – cosmovisão, valores, tarefas. São Paulo: Paulinas, 2011.
MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança: estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma escatologia cristã. São Paulo: Editora Teológica, 2003.
PRANDI, Reginaldo. Os Candomblés de São Paulo: uma pesquisa etnológica. São Paulo: HUCITEC, 2005.
RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Edusp, 2019.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Intolerância Religiosa no Brasil: Religião e Racismo. São Paulo: Contexto, 2021.
SUSIN, Luís C. A Criação de Deus, Paulinas/Siquem, 2003.
WOLFF, Elias. “Campanha da Fraternidade Ecumênica 2016: compromisso das igrejas pela vida no planeta”. Encontros Teológicos, vol. 3, nº 72, p. 13-25, 2015.
____________. Águas para a vida”! Apelo aos povos e seus credos. São Paulo: RECRIAR, 2019.
Fé, Sustentabilidade e Paz - O Papel das Religiões na Construção de uma Sociedade com Justiça, Paz e Integridade da Criação
A relação entre religião e meio ambiente é histórica e profundamente significativa e enraizada na cultura humana. Muitas tradições religiosas reconhecem nos elementos naturais uma dimensão sagrada, como um cuidado da Terra e de todas as outras criaturas vivas para o Criador.
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